Catequese do 1º Domingo da Quaresma de D. José Policarpo

«O poder criador da Palavra: as obras da Palavra»

Sé Patriarcal, 1 de Março de 2009

Introdução
1. Na Quaresma do ano passado, estávamos no período de preparação do Sínodo dos Bispos sobre a “Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja”. As Catequeses Quaresmais sobre o mistério da Palavra revelada inseriram-se nessa preparação. O Sínodo realizou-se, e o seu eco chegou até nós através de uma belíssima Mensagem dirigida pelos Padres Sinodais a todo o Povo de Deus. As próprias propostas feitas pelo Sínodo ao Santo Padre, em ordem à redacção da Exortação Apostólica, foram tornadas públicas, além de outros elementos, como as homilias do Santo Padre e outras intervenções particularmente significativas, disponíveis nos meios de informação da Santa Sé. Temos, assim, elementos suficientes para continuar a aprofundar o tema, dada a importância decisiva da Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. E essa é a primeira interpelação que o Sínodo nos lança: considerar a Palavra de Deus como elemento importante na nossa conversão, na nossa fé, na nossa fidelidade expressa na vida, na missão da Igreja na sociedade contemporânea, com particular relevância para o sentido novo de todas as coisas, e especial incidência na exigência ética da vida de cada um de nós e na vida da sociedade como um todo, numa circunstância particularmente problemática da nossa vida colectiva.
Na tradição bíblica, tanto do Antigo como do Novo Testamento, a Palavra de Deus aparece ligada a três dimensões da vida cristã e, no fundo, da vida de todos os homens: antes de mais ela é uma Palavra de revelação. Nela, Deus fala-nos e revela-Se; como Palavra, ela dirige-se à nossa inteligência e permite-nos conhecer Quem Deus é e os desígnios de vida que tem para nós. Depois, a Palavra manifestou-se como força criadora, eficaz, com poder de realizar aquilo que anuncia: “Vós sabereis que Eu, Yahwé, disse e fiz” (Ez. 17,14); e finalmente a Palavra de Deus é promessa, anuncia o que Deus fará pelo Seu Povo, até à plenitude escatológica. E porque a Palavra de Deus é eficaz, realiza aquilo que anuncia, a palavra da promessa torna-se o fundamento objectivo da esperança.
Este ano, no intervalo entre o Sínodo e a publicação, pelo Santo Padre, da Exortação Apostólica que esperamos, tendo em conta os desafios de autenticidade cristã que se apresentam à Igreja nesta sociedade complexa, em que vivemos, escolhi como fio condutor das Catequeses desta Quaresma o segundo aspecto, isto é, o poder criador da Palavra, que tem de ser compreendida no contexto mais vasto da eficácia sacramental da Igreja. Teremos de nos perguntar porque é que a Palavra de Deus, que tão abundantemente escutamos, não é eficaz, produzindo em nós, na Igreja a que pertencemos, a mensagem que anuncia. Porque é que a Palavra não nos mobiliza para um ideal de humanidade, carregado de grandeza ética, que além de ser fermento para toda a sociedade, seria o nosso caminho de santidade.

A Palavra criadora e salvadora
2. O judeo-cristianismo, na sua compreensão do homem e da história, é atravessado por uma convicção firme e basilar: Deus, pela Sua Palavra, age, intervém, cria e salva. A Sua Palavra está na génese de toda a realidade, da criação e da história. No pensamento bíblico, a criação não é uma emanação do divino, perspectiva presente em todos os panteísmos. Mas é obra de Deus, através da Sua Palavra criadora. A criação é fruto de um pensamento, de um desígnio divino, que Deus realiza através da Palavra: Deus diz e as coisas acontecem; basta Deus dizer, para elas acontecerem.
Ao contrário das cosmogonias antigas, a Bíblia explica a criação do mundo e do homem como fruto eficaz da Palavra pronunciada por Deus. “Deus disse e fez-se” (Ps. 33,6-9). A Palavra criadora é a fonte da inteligibilidade da criação, porque tudo é fruto da Palavra e esta é inteligível, é reveladora dum sentido, manifesta o desígnio que presidiu à criação.
O próprio homem, enriquecido com o dinamismo da evolução progressiva, é fruto de uma Palavra de Deus: “Façamos o homem à nossa Imagem!...” (Gen. 1,26). Criado à imagem de Deus, o homem é um ser livre, com possibilidade de intervir na sua vida e no seu destino. A partir do acto criador, a existência do homem sobre a terra transforma-se em história. Deus continua a ter um desígnio para essa história, a Sua Palavra intervém na história, é, desde o início, uma palavra de salvação, mas a eficácia criadora dessa Palavra pode encontrar a barreira na liberdade humana. Como diz a Mensagem dos Padres Sinodais, “A Palavra divina também está na raiz da história humana. O homem e a mulher, que são “imagem e semelhança de Deus” (Gén. 1,27) e que, por isso, levam em si a marca divina, podem entrar em diálogo com o seu Criador ou podem afastar-se dele e rejeitá-lo através do pecado. Então, a Palavra de Deus salva e julga, penetra na trama da história, com o seu tecido de vicissitudes e eventos: “Observei a aflição do meu Povo no Egipto e ouvi o seu grito… conheço os seus sofrimentos. Desci para o libertar do Egipto e o fazer sair desta terra para uma terra bela e espaçosa…” (Ex. 3,7-8). Há, pois, uma presença divina nas vicissitudes humanas que, mediante a acção do Senhor na história, são inseridas num desígnio mais alto, para que “todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade (1Tim. 2,4)” .
Uma das características desta Palavra, que está na origem da criação e intervém na história, é a sua eficácia. Ela realiza o que anuncia. O único obstáculo que pode encontrar, é a liberdade do homem que recusa a Palavra e escolhe outros caminhos. E então a própria Palavra põe a nu o pecado como recusa da liberdade humana. Na trama da história, a eficácia da palavra divina supõe a fé como disponibilidade humilde para aceitar a acção salvífica de Deus. O Profeta Isaías exprime esta profunda convicção com rara beleza profética: “Como a chuva e a neve descem dos céus e não voltam para lá sem terem regado a terra, a terem fecundado e feito germinar para que dê a semente ao semeador e o pão para alimento, assim a palavra que sai da minha boca não voltará sem resultado, sem ter feito o que Eu queria, e realizado a sua missão” (Is. 55,10-11).
Esta Palavra de Deus que desceu à terra é o Verbo que encarnou, ficou em acção na história e quando voltar, no fim dos tempos, para inaugurar os “novos céus e a nova terra”, os seus frutos de salvação terão sido imensos no resgatar da humanidade. No caso de Cristo, a harmonia entre o poder da Sua Palavra e a fé são claras. Ao centurião Ele diz: “Faça-se segundo a tua fé. E naquele momento o seu servo ficou curado” (Mt. 8,13). A Palavra de Cristo realiza sempre o que anuncia, mas a sua eficácia supõe a fé de quem recebe o fruto dessa acção. Aos miraculados o Senhor diz: foi a tua fé que te salvou.

3. Na origem do ser das coisas, a Palavra de Deus é o fundamento sólido da própria realidade. O Santo Padre Bento XVI, numa homilia durante o Sínodo, comentando o Salmo 118, diz: “A Palavra de Deus é o fundamento de tudo, é a verdadeira realidade. E para sermos realistas, temos mesmo que contar com esta realidade; temos que mudar a nossa ideia de que a matéria, as coisas sólidas que se podem tocar seriam a realidade mais sólida, mais segura. No final do Sermão da Montanha, o Senhor fala-nos das duas possibilidades de construção da casa da própria vida: na areia e na rocha. Constrói na areia somente quem edifica nas coisas visíveis e tangíveis, no sucesso, na carreira e no dinheiro. Aparentemente, estas são as verdadeiras realidades. Mas um dia tudo isto passará. E assim todas estas coisas, que parecem a verdadeira realidade com a qual contar, são realidades de segunda ordem. Quem constrói a própria vida sobre estas realidades, sobre a matéria, sobre o sucesso e sobre tudo aquilo que se vê, edifica na areia. Somente a Palavra de Deus é fundamento de toda a realidade, é estável como o céu e mais que o céu, é a realidade. Portanto, temos que mudar o nosso conceito de realismo. Realista é quem reconhece na Palavra de Deus, nesta realidade aparentemente tão frágil, o fundamento de tudo. Realista é aquele que constrói a sua vida precisamente neste fundamento, que permanece. E assim estes primeiros versículos do Salmo convidam-nos a descobrir o que é a realidade e a encontrar desde modo o fundamento da nossa vida e como construir a vida” .

A Palavra em acção na Igreja
4. A Igreja é o lugar onde a Palavra de Deus continua a agir na história. Ela própria é um fruto da Palavra, sobretudo da palavra apostólica. Neste Ano Paulino, somos chamados a redescobrir como a palavra do Apóstolo gerou Igrejas, introduzindo, assim, uma novidade na sociedade daquele tempo. A palavra apostólica prolonga no tempo a força criadora da Palavra de Jesus que proclamou solenemente a perenidade da Sua Palavra: “O Céu e a Terra passarão, mas as minhas palavras não hão-de passar” (Mt. 24,35). A palavra apostólica afirma-se na Igreja primitiva com esta força, como potência de salvação. O crescimento da Igreja é identificado com a expressão da Palavra: “E a Palavra do Senhor crescia; o número de discípulos aumentava em Jerusalém e uma multidão de sacerdotes obedecia à fé” (Act. 6,7; cf. 12,24).
A Igreja primitiva faz a experiência de identificar a Palavra em acção no crescimento da Igreja. O que a fé do Antigo Testamento acreditava acerca do poder da Palavra na criação e na história da salvação é agora verdade acerca da Palavra de Jesus, Ele que é a Palavra encarnada, continuada na palavra dos Apóstolos. Na obra da salvação e no crescimento da Igreja, a palavra apostólica tem a mesma força criadora que teve a Palavra eterna de Deus na criação e na história da salvação. Aliás, Jesus tinha prometido aos Apóstolos essa eficácia salvífica da sua palavra: “Em verdade vos digo, tudo o que ligardes na Terra, no Céu será tido como ligado, e tudo o que desligardes na Terra, no Céu será tido como desligado” (Mt. 18,18). A mesma garantia será dada a Pedro (cf. Mt. 16,19ss). Um dos poderes da palavra dos Apóstolos que Deus tomará a sério é o poder de perdoar os pecados, algo que só Deus pode fazer: “Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos” (Jo. 20,23).
O segredo do crescimento da Igreja passa por esta certeza do poder eficaz da Palavra na Igreja. Isso é absolutamente claro e seguro na acção sacramental da Igreja, pela qual torna actuante a força transformadora da Páscoa de Jesus. A celebração dos sacramentos é um caso claro da eficácia da palavra da Igreja. Quando a Igreja diz: “Isto é o Meu Corpo”, “recebe o Espírito Santo”, “os teus pecados são-te perdoados”, a eficácia desta palavra é garantida pelo Espírito Santo e nem sequer depende da santidade do ministro que a pronuncia. Mesmo pronunciada por um pecador, em nome da Igreja, ela realiza aquilo que diz.
Mas a eficácia da Palavra, pronunciada e anunciada pela Igreja, realiza-se também no coração dos cristãos, quando, na obediência da sua fé, eles deixam que a palavra realize neles o que anuncia. A justiça e a santidade são fruto da Palavra. A Igreja, desde o princípio, acredita que a Palavra é viva e eficaz: “Viva é a Palavra de Deus, eficaz e mais incisiva que uma espada de dois gumes” (Heb. 4,12). Referindo-se à presença dos cristãos na sociedade, São Paulo diz aos Filipenses: “No mundo, vós brilhais como focos de luz, apresentando-lhe a Palavra de vida” (Fil. 2,15-16).
Permitir que a Palavra seja viva, eficaz e criadora na nossa vida, eis o segredo do crescimento e da fidelidade da Igreja. Isso define a fé com que se escuta e acolhe a Palavra. Não pode ser uma fé que seja só aceitação teórica, tem de ser abertura humilde e confiante à força da Palavra que nos transformará o coração e mudará as nossas vidas.

A Fé e as Obras
5. Uma fé que aceita a Palavra, mas que não dá origem à concretização, nas nossas atitudes, dos frutos de vida e de redenção que a Palavra anuncia, não é a fé que nos salva. O Apóstolo São Tiago é claro a esse respeito, concretizando na caridade o fruto da palavra eficaz: “Para que serve, meus irmãos, se alguém diz «tenho fé», se não tem obras? A fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou irmã estão nus, se não têm com que se alimentar e um de entre vós lhe diz: ide em paz, aquecei-vos, saciai-vos, sem lhes dar o que necessitam para o seu corpo, de que lhes serve? Acontece o mesmo com a fé; se não tem as obras, está completamente morta! (Tiag. 2,14-17). Esta situação, denunciada pelo Apóstolo, pode acontecer hoje: belíssimos discursos sobre a pobreza, que não levam a nenhuma acção em favor dos pobres.
O que é esta fé sem as obras? Pode ser uma adesão intelectual à Palavra, mas falta-lhe a coragem de exprimir em acções o que a Palavra sugere. É o caso em que a nossa vontade e a nossa liberdade se tornaram obstáculo à eficácia da Palavra. Esta sugere atitudes, exige mudança e generosidade. Acolher a Palavra é aceitar a sua exigência e empenhar a nossa vontade na realização das acções que ela sugere. No seu ensinamento, Jesus alerta para o perigo de acolher a Palavra sem a transformar em atitudes. É o sentido da Parábola do Semeador. Só num pequeno grupo a semente dá fruto abundante. Nos outros casos, a Palavra foi acolhida mas ficou estéril (cf. Mt. 13,3ss). “Não é dizendo “Senhor, Senhor”, que se entra no Reino dos Céus, mas fazendo a vontade de Meu Pai que está nos Céus”. Jesus distingue a sorte daqueles que ouvem a Sua Palavra e a põem em prática da daqueles que a ouvem e não a põem em prática (Mt. 7,21ss). Os que passam à prática são aqueles que “guardam” a Sua Palavra. Para São João, só quem cumpre os mandamentos, sobretudo o mandamento do amor, guarda a Palavra (cf. 1Jo. 2,3-5). Só esses, os que puseram a Palavra em prática no amor dos irmãos, amam a Deus (cf. Jo. 14,23).
Não há fé viva sem fidelidade, e esta não consiste em pensar sempre da mesma maneira, aceitando o ensinamento da Palavra de Deus; a fidelidade situa-se no campo da caridade, da luta pela justiça, pela vida, pela verdade. Na fidelidade, a fé torna-se acção, é força de transformação do mundo. É por isso que nas obras da fé, naquela fé que deixa a Palavra realizar o seu fruto, nós podemos escutar o Senhor, sentir o Seu Espírito em acção no mundo. É a força eloquente do testemunho. Contemplando os frutos da Palavra, nós podemos chegar até ela, encontrando o Senhor da Palavra, ou melhor, o Senhor que é Palavra.

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca