Comissão Nacional Justiça e Paz

Na crise, viver a esperança e fortalecer a solidariedade,
construindo um mundo melhor
– uma responsabilidade de todos nós.
"A crise económica deve levar a uma nova síntese entre bem comum e mercado, entre capital e trabalho” (Bento XVI)


1. Introdução
Como em anos anteriores, a Comissão Nacional Justiça e Paz coloca à disposição das comunidades cristãs e dos homens e mulheres de boa vontade um texto que os possa ajudar a uma reflexão mais profunda em tempo de Quaresma. (1)
No contexto actual, a Comissão entendeu que deveria consagrar este documento a alguns aspectos relevantes da actual crise mundial, que a todos afecta e de todos requer um esforço de discernimento e um renovado compromisso pessoal e colectivo no sentido de vencer a crise e, do mesmo passo, contribuir
para a edificação de um mundo mais justo e mais solidário.
Em última instância, a esperança cristã radica no amor de Deus, que através do seu Filho Jesus Cristo, salvou a Humanidade. Fê-lo não à margem dos homens, mas envolvendo-os, consigo, num processo que atravessa a história com todas as suas vicissitudes, tristezas e alegrias.
Quer isto dizer que, na actual situação, como em quaisquer outras, ninguém pode permanecer passivo, como se as soluções para os problemas pessoais e colectivos houvessem de vir dos «outros», sem qualquer contributo de cada um. Seja como membros da grande família humana, toda ela afectada pela crise, seja como portadores da esperança, para nós e para os outros, somos chamados a reflectir sobre os acontecimentos e aconduzi-los no sentido da justiça e da paz. Assim, a conversão a que o tempo quaresmal convida não se limitará à sua dimensão individual, mas abrangerá, também, a nossa relação e solidariedade com os outros, envolvidos pelo amor de Deus, que se estende sobre todos e cada um.
Este o espírito com que a CNJP formula as considerações que se seguem.

2. As manifestações da crise
O Mundo está mergulhado numa crise civilizacional profunda e, talvez, na maior crise económica, desde 1929. De há muito que se vinham acumulando sinais de mal-estar associados ao modo de funcionamento da economia, esta cada vez mais globalizada, dominada pelo capital financeiro e funcionando em mercados globais desregulados.

A crise financeira, que eclodiu nos Estados Unidos há cerca de dois anos e tem vindo a desabar sobre a economia real da generalidade dos países, desde meados do ano passado, veio pôr em evidência deficiências estruturais e o mau funcionamento do sistema económico-financeiro, no seu conjunto, que se reflectem sobretudo nas desigualdades crescentes dentro dos países e entre países; na produção de pobreza e exclusão social; no desajustamento entre a oferta e a procura de emprego e maior desvalorização do trabalho humano; na insustentabilidade ambiental; nos riscos crescentes de implosão social e, por arrastamento, no risco de retrocesso sério da democracia e da consolidação da paz social.

A economia portuguesa não consegue escapar aos efeitos desta crise mundial. Além de algum possível contágio dos “produtos financeiros tóxicos” nos activos de bancos nacionais ou da escassez de crédito por dificuldades de acesso ao mercado internacional, a economia portuguesa é penalizada pela sua grande dependência no seu sector exportador, fraca especialização produtiva, debilidade do tecido empresarial, dimensão exígua do mercado interno e elevado grau de endividamento, tanto interno como externo.

Por todas estas razões, há motivos para nos preocuparmos com o futuro da nossa economia e, consequentemente, com as condições de vida no nosso país, que já se traduzem em novas situações de pobreza e precariedade. É de recear, sobretudo, o alastramento do desemprego e do emprego precário, pela insuficiência de novos investimentos e de novas oportunidades de emprego, quando confrontados com despedimentos massivos por parte de empresas que procuram fazer face à crise por via da redução do pessoal, deslocalização ou encerramento da sua actividade por não verem condições de viabilidade económico-financeira que lhes permitam sobreviver à crise. De notar que, em alguns casos, se recorre, abusivamente, ao despedimento apesar de os accionistas terem meios financeiros suficientes para o evitar.

Um desemprego extensivo e prolongado é, justamente, considerado como a consequência mais funesta da crise, que pode afectar os portugueses e quantos vivem e trabalham no nosso país.
A eventual perda de rendimento das famílias onde exista um ou mais desempregados constitui, só por si, um novo risco de pobreza das famílias e de agravamento do nível de endividamento já elevado, além de se repercutir no nível da procura interna e seu efeito sobre produção nacional.
Importa aqui salientar que o emprego, para além de ser fonte de rendimento, é também uma base primordial de socialização e de estatuto social, e a sua perda contribui muito para a baixa da auto-estima e para a desafiliação social.
Por outro lado, não pode ignorar-se que o desemprego exigirá do governo medidas ambiciosas de política social que se irão traduzir em acréscimo de despesa pública e, se esta não for compensada com receitas de valor equivalente, dará lugar ao agravamento do desequilíbrio das contas públicas, com os conhecidos efeitos perversos. Importa, pois, sublinhar que a crise é, além do mais, uma chamada de todos a mais justiça e solidariedade que viabilizem as necessárias medidas de protecção social.

Em suma, estamos diante de problemas muito sérios que exigem uma condução inteligente, determinada e responsável da política económica nacional, virada fundamentalmente para o bem comum da sociedade, grande sentido de responsabilidade por parte dos principais actores económicos e sociais (empresas e suas organizações e sindicatos), bem como grande capacidade de inovação e criatividade por parte da sociedade civil, mas cujo êxito depende, em larga medida, do que vier a ser conseguido no plano supranacional. Daí a importância de que as várias intervenções não descurem o espaço europeu e o quadro mundial, em que, inevitavelmente, se têm de situar.

3. A crise como um feixe de oportunidades
Porém, para além da face sombria da crise, esta pode e deve ser acolhida também como um feixe de oportunidades.

Desde logo, porque torna mais evidente a urgência de uma nova arquitectura do sistema financeiro mundial. De há muito que se defendem medidas de maior transparência, controlo e regulação dos fluxos financeiros mundiais, os quais têm vindo a ser, sistemática e abusivamente, drenados para fins especulativos, sem levar à produção de riqueza socialmente útil. Presentemente, com o eclodir da crise, existe abertura no plano mundial a que se estabeleça um novo acordo monetário e financeiro internacional, à altura dos novos desafios, à semelhança do que foi feito, no passado.

A agudização e a amplitude da crise propicia a que os responsáveis políticos, pressionados pelos cidadãos e cidadãs dos vários países, sejam confrontados com a exigência de medidas que poucos meses atrás eram tidas como irrealistas. São exemplos a abolição dos paraísos fiscais, a tributação do valor acrescentado nas transacções financeiras em bolsa, ou a refundação das organizações financeiras mundiais, nomeadamente o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, ou, eventualmente, a criação de uma nova instituição internacional de regulação financeira global, dotada de objectivos e meios de acção à altura das necessidades da economia globalizada e da sua boa governança democrática. Na célebre encíclica Pacem in Terris, publicada em 1963, disse o Papa João XXIII: “O bem comum universal levanta hoje problemas de dimensão mundial que não podem ser enfrentados e resolvidos adequadamente senão por poderes públicos que possuam autoridade, estruturas e meios de idênticas proporções, isto é, de poderes públicos que estejam em condições de agir de modo eficiente no plano mundial. Portanto, é a própria ordem moral que exige a instituição de alguma autoridade pública universal”.2 Esta recomendação, feita numa altura em que a globalização ainda dava os seus primeiros sinais, torna-se hoje um imperativo inadiável.

Acrescente-se que as políticas e medidas tomadas ou que venham a ser adoptadas devem ser acompanhadas de rigorosos e exigentes critérios e mecanismos de monitorização e fiscalização.

Não pode silenciar-se, a este propósito, o relevantíssimo papel dos sistemas legislativo e de justiça, que, por razões diversas, têm visto a sua credibilidade gravemente afectada aos olhos da opinião pública. Sendo, como são, pilares fundamentais da democracia e do Estado de Direito, é urgente que venham a reconquistar a indispensável confiança do povo português. Do mesmo passo, a crise pode também servir de ocasião para introduzir melhorias qualitativas na vida das pessoas e promover a humanização das sociedades.

É sabido que o sistema vigente conduziu a uma deformação das prioridades do desenvolvimento, com opções de produção centradas no maior lucro e não no que é necessário ou útil à qualidade de vida das pessoas. O sistema vigente também abriu caminho, de modo geral, a que, nas décadas passadas, pessoas e países vivessem acima das possibilidades (limites de recursos individuais ou colectivos, mas também limites de sustentabilidade ecológica). Nestas condições, a actual crise poderá ajudar a recuperar alguma austeridade perdida, e a canalizar os recursos às verdadeiras necessidades humanas e sociais. Neste domínio, se é verdade que muito do que há a fazer é da competência dos poderes públicos, não é menos importante é o que cabe às pessoas e às famílias fazer, sobretudo em relação com os estilos de vida e os padrões de despesa e consumo.

A magnitude da presente crise traz consigo um forte apelo a que sejam encontrados novos conceitos e formas jurídico-institucionais que acentuem a responsabilidade social das empresas, impondo que dos respectivos balanços constem os efeitos da gestão sobre as condições de vida dos respectivos trabalhadores, a economia e a sociedade. De facto, não pode aceitar-se que, por exemplo, uma empresa, seduzida por maior lucro no curto prazo, e só por isso, proceda a despedimentos de pessoal ou descure normas de defesa ambiental.

É muito positivo que, cada vez com mais frequência, se questione a razão por que o desempenho e as remunerações dos gestores só têm em conta o lucro do capital, ou por que são tolerados lucros exorbitantes, sem que exista a obrigatoriedade de, em paralelo, serem revistos os preços dos produtos ou os custos salariais respectivos, nomeadamente em casos de monopólio ou oligopólio, ou, ainda, por que caminhamos para concentrações gigantescas de poder económico.

A crise constitui, também, um maior apelo à solidariedade e à inovação social. Neste domínio, um largo campo se abre a propostas como as de Muhammad Yunus3, no domínio do microcrédito e do “negócio social”. Se a sociedade civil vier a aproveitar estas novas oportunidades, as mesmas facilitarão o desenvolvimento de um motor de mudança que permita a emergência de modelos de organização da vida pessoal e colectiva novos, mais solidários e mais humanos.

A crise sugere, ainda, que seja dada maior atenção ao desenvolvimento local, com o que isso comporta de valorização de recursos locais e seu aproveitamento para melhorar as condições de vida das populações. É de notar que as autarquias mais inovadoras, em colaboração com as organizações da sociedade civil implantadas nos seus territórios, já dão sinais de algum empenhamento neste sentido.

Por último, a crise veio mostrar a necessidade de reforçar o papel do Estado nacional na condução da política económica, e chamar a atenção para a importância de uma rede de serviços públicos de qualidade em áreas fundamentais, pondo um travão à tendência de privatização e mercantilização de bens e serviços fundamentais, como o abastecimento de água potável ou os cuidados de saúde.

4. Revisão dos fundamentos e postulados da Ciência Económica
Diante da natureza da crise e dos seus efeitos devastadores, é também a teoria económica de matriz neo-liberal que perde credibilidade e se revela incapaz de interpretar a realidade económica. Consequentemente a efectiva resposta aos novos desafios da crise não deve ser procurada em políticas económicas assentes naquela inspiração.

Manifestamente, o mercado, só por si, não resolve, antes agrava, problemas fundamentais de adequação dos recursos às necessidades. Daí que se volte a defender maior intervenção do Estado na economia e a necessidade de estratégias concertadas de desenvolvimento a prazo. O investimento público surge como instrumento privilegiado para contrabalançar a tendência para a recessão económica, e o reforço de posição do Estado na banca apresenta-se como meio de favorecer o acesso ao crédito e agilizar a economia. Do Estado se espera também que, através de políticas sociais selectivas, minimize a perda de rendimento em caso de desemprego e acelere a formação e qualificação dos recursos humanos promovendo activamente a empregabilidade e a inovação.
Impõe-se, também, que o Estado intervenha no sentido de reduzir as desigualdades, que estão atingindo limites inaceitáveis, e de incrementar a luta contra a pobreza, atendendo a que, num momento de crise profunda, os mais desfavorecidos tenderão a ficar ainda mais desprotegidos.

Por estas razões, ao reflectirmos sobre a actual crise somos levados a interpelar também a Universidade, de modo particular, as escolas superiores de economia e gestão. À medida que se sucedem as análises acerca da crise e se identificam os seus responsáveis e protagonistas, mais claro se torna que boa parte das razões subjacentes têm a ver com a enorme inconsciência com que os grandes negócios mundiais têm sido conduzidos (défice de conhecimento), uma incapacidade de análise crítica e previsional (défice do saber fazer) e também com comportamentos éticos muito negativos onde prevalecem a ambição e o egoísmo (défice de formação ética).

Tais factos, além de suscitarem interrogações particularmente sérias e graves quanto ao conteúdo da formação universitária nas áreas da economia e da gestão, denunciam uma orientação de fundo que tende a subestimar o «saber fazer» e a ignorar de todo o «saber ser», isto é, a dimensão ético-moral da formação, o sentido crítico e a responsabilidade pessoal. É este défice de formação e de normas de conduta que explica que, em plena crise, e depois do recurso a dinheiros públicos para acudir à situação das instituições financeiras, ainda existam administradores de topo de algumas dessas instituições que continuam a reservar para si próprios compensações elevadas e privilégios remuneratórios. Ocorre perguntar até quando. É certo que a Universidade não pode ser responsabilizada pelo comportamento daqueles que forma, mas pode e deve ser responsável pela formação que oferece.

5. Que fazer?
Antes do mais, importa reconhecer que, tanto nas causas como nos efeitos, a presente crise mundial é económica, mas também política, civilizacional, ambiental, moral e espiritual. Duas alternativas se colocam a quem se proponha resolvê-la:
i) recorrer a soluções de índole individualista, reforçando posturas egoístas semelhantes ou idênticas às que geraram a própria crise;
ou ii) mobilizar energias e a experiência adquirida com a crise para ousar alterar as causas profundas da situação.

Por razões óbvias, rejeitamos a primeira atitude, que só conduziria ao aprofundamento da crise e, mais cedo ou mais tarde, a novas crises semelhantes e de consequências sociais e políticas imprevisíveis. Contrariamente, o que se impõe são comportamentos mais solidários e socialmente mais responsáveis, que reforcem e respeitem os critérios e valores requeridos para enfrentar os desafios que a crise coloca. São critérios e valores que deverão inspirar os comportamentos individuais, as práticas empresariais e a acção do Estado.

Ao verificar que uma crise nascida em instituições financeiras dos EUA se estendeu ao mundo inteiro, teremos dado conta de que a «globalização» é um facto real e profundo. É tempo de interiorizarmos essa realidade, tornando-a um elemento da nossa cultura, do modo como olhamos e compreendemos a vida e o mundo. A noção de que somos membros de uma única família humana afirmou- se de modo inequívoco, infelizmente sobretudo sob a forma de uma crise.
Mas notaremos, também, que essa mesma globalização, se bem orientada, como se impõe, contém um potencial extraordinariamente rico para promover o bem da humanidade. Nesta linha de pensamento sobressaem algumas orientações:

• Reconhecer que a teoria neo-liberal padece de um erro antropológico grave: o de considerar que a motivação central do comportamento humano está no interesse individual, e que quando cada um procura o seu próprio interesse, a situação resultante é o bem comum da sociedade. A este erro acresce um segundo, o de pensar que o mecanismo através do qual esse bem comum é atingido é o mercado, que deve poder funcionar livremente, ou seja, em livre concorrência. Foi este, precisamente, o sistema que se mostrou altamente vulnerável à especulação, à irresponsabilidade nos riscos, a mecanismos de expansão de práticas financeiras virtuais e descoladas da realidade.

• Colocar as pessoas – e não o dinheiro – no centro da organização da economia e da sociedade. Isto é válido quer para as empresas como para cada um de nós. Para as empresas, isto implica o sentido da responsabilidade social na escolha dos produtos, na organização empresarial e nas condições do trabalho. Para cada um de nós, o objectivo de centrar na pessoa humana a organização da economia e da sociedade, implica que definamos a nossa relação com a economia e a sociedade em função do que é verdadeiramente humano, rejeitando modelos materialistas de uma felicidade baseada apenas em bens materiais.

• Reforçar a solidariedade e as relações humanas, de modo a que ninguém fique só diante das dificuldades trazidas pela crise. Neste domínio, a crise é um desafio particularmente oportuno para que a sociedade portuguesa, os portugueses e as portuguesas se confrontem com os critérios da justiça e da solidariedade. É toda a sociedade que é chamada a progredir decidida e seriamente no sentido do discernimento, da justiça e da solidariedade.

• Exaltar e fazer respeitar os direitos humanos universais, a justiça e a paz como valores da Humanidade. A perspectiva dos direitos humanos tem sido pouco assumida, quer pelo Estado, quer pela sociedade civil, nas implicações práticas, sobretudo no que respeita aos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais. No actual contexto, assume particular relevância o «destino universal dos bens da terra», segundo o qual, nas palavras do Concílio Vaticano II, “Deus destinou a terra e tudo o que nela existe ao uso de todos os homens e de todos os povos, de modo que os bens da criação afluam com equidade às mãos de todos, segundo a regra da justiça, inseparável da caridade”4. “Todos os outros direitos – acrescenta o Papa Paulo VI –, quaisquer que sejam, incluindo os de propriedade e de comércio livre, estão-lhe subordinados: não devem portanto impedir, mas, pelo contrário, facilitar a sua realização; e é um dever social grave e urgente conduzi-los à sua finalidade primeira”5. Em suma, trata-se de aprofundar e fazer passar para a cultura dominante e
para a vida quotidiana uma nova mundividência que, por sua vez, permita enfrentar a crise com lucidez e determinação. Pelo que respeita, em particular, aos cristãos, o tempo da Quaresma é, como se sabe, particularmente propício à revisão dos critérios e valores por que se regem, na sua sempre renovada caminhada no sentido do amor de Deus e dos outros.

Não basta, porém, mudar o referencial dos valores matriciais do nosso modo de viver. Há que procurar viabilizar novas construções da economia e da sociedade. A este propósito, importa reconhecer que a crise tem carácter estrutural e alcance civilizacional, e, por conseguinte, a nossa atenção e empenhamento deve seguir, simultaneamente, um triplo sentido:

• Ajudar a minimizar os «estragos» e acudir às situações mais gravosas;
• Evitar que a crise se agrave;
• Criar condições para que a crise não venha a repetir-se.

Por este enunciado se conclui pela necessidade de um agir estruturado e colectivo por parte da sociedade civil, sem, por isso, deixar de exigir do Estado que responda, urgente e eficazmente, à angústia dos que não encontram meios de subsistência digna, e são-no cada vez em maior número.

Seguidamente dão-se exemplos de medidas que, no plano nacional, nos merecem atenção e debate por parte da sociedade civil:

• A criação, por parte do Estado, de um fundo de emergência social bem como a adopção de novo impulso e maior dinamismo das redes sociais, por forma a que não faltem recursos para prevenir e ocorrer às carências sociais mais graves. Por que não mobilizar os cidadãos mais afluentes no sentido de prescindirem do seu consumo supérfluo em favor de uma erradicação efectiva da pobreza?

• Conseguir que a banca diminua as restrições à concessão de crédito às empresas (especialmente micro e PME), sobretudo em sectores em que os potenciais de inovação tecnológica e de exportação são relevantes para a economia nacional e local.

• Dar maior atenção ao desenvolvimento local, pois é este que permite a melhor identificação das necessidades das respectivas populações e a mobilização dos recursos materiais e humanos para as satisfazer, com a vantagem de permitir criar empreendimentos mais sustentáveis num mundo global.

• Fomentar e apoiar a criação de empresas de economia social.

• Reforçar os meios do chamado «terceiro sector», já que estas entidades adquirem neste contexto uma particular relevância, e incentivar diferentes tipos de organizações comunitárias de base. “Uma luta pela reconstituição do local como meio primordial é, muitas vezes, o único caminho para evitar a privação e o desespero endémicos” (Giddens).

6. Uma oportuna mudança de paradigma na gestão financeira global
Não basta atender apenas às consequências da crise e minimizar os seus «estragos» sociais. Se as soluções para a actual crise se limitarem a “consertar” o sistema financeiro, tudo acabará por voltar ao mesmo. A desregulação, a favor da ganância irresponsável, voltará a envolver todos os domínios da vida colectiva: ambiental, financeiro, económico, laboral, político e ético.
É, pois, importante que vá crescendo a consciência, entre os decisores pertinentes ou relevantes, de que é indispensável alcançar uma maior regulação da economia a nível global e que, para tanto, há que reestruturar ou reconfigurar instituições internacionais, tais como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio, retirando a hegemonia a qualquer país ou bloco, por mais importantes que sejam ou tenham sido. Eventualmente, e em alternativa, pode ser preferível a criação de uma nova instituição supranacional de regulação financeira global, diferente das actualmente existentes, por forma a dotar essas instituições de objectivos e meios de acção à altura das necessidades da economia globalizada em que vivemos e da sua governança democrática. Desejavelmente, tal instituição deverá situar-se no âmbito da Organização das Nações Unidas.

Deve também ser reforçado o peso institucional mundial da Organização Internacional do Trabalho e aprofundar os programas e práticas que vão no sentido da Agenda para o Trabalho Digno. O mesmo se faça quanto aos compromissos com os Objectivos do Milénio das Nações Unidas. Parece impor-se, cada vez mais, a necessidade de uma nova ordem económica internacional que tenha em conta a realidade da globalização, as necessidades de desenvolvimento das várias regiões do globo, a sustentabilidade ambiental e a coesão social. Quer ao nível supranacional quer ao nível nacional, os cidadãos e as cidadãs não podem ser excluídos nem estar ausentes dos processos de decisão com impacto estratégico ambiental, económico e social.

Devem, portanto, ser dados passos no sentido de uma real mudança de paradigma: uma “economia ao serviço da vida” (Henri Bartoli6) – mudança que passa por reconfigurar os papeis do mercado, do capital e do trabalho. Quanto ao papel do trabalho, ocorre citar a autoridade de Juan Somavia, Director-Geral da OIT, ao lembrar o disposto na Constituição desta organização: “O trabalho não é uma mercadoria”. Também João Paulo II, na encíclica Laborem Exercens, recordou o “princípio da prioridade do «trabalho» em confronto
om o «capital»” e, noutro passo, afirmou que “…o «capital», sendo o conjunto dos meios de produção, permanece apenas instrumento”.

Para tal mudança de paradigma, há dois princípios orientadores que deviam ser também como que “motores” do funcionamento da economia e da vida social no seu todo:

a) O princípio da sustentabilidade ambiental, económica e social, o qual implica:
• O estabelecimento de critérios e indicadores que estimulem investimentos assim orientados;
• Uma atenção interventora que promova e proteja a equidade nas remunerações de empresários, gestores e trabalhadores e a dignificação do trabalho, não permitindo que os interesses do capital se sobreponham aos demais;
• Forte apelo à responsabilidade social das empresas.

b) O princípio do funcionamento democrático da economia, mediante a adopção de instrumentos dotados de efectivo poder de regulação por parte de instâncias representativas e com legitimidade democrática, bem como uma nova cultura empresarial que imponha critérios de responsabilização social para além dos ditados pelo mero interesse do capital.

Uma mudança de paradigma não se alcança sem um longo e persistente percurso de crítica e construção de alternativas, de aprofundamento do conhecimento adquirido e experimentação de novas formas organizacionais da economia e da sociedade, enfim, da modificação dos quadros culturais vigentes. Por isso, consideramos urgente:

• Promover o debate entre especialistas, quer profissionais quer académicos, envolvendo também as organizações da sociedade civil mais directamente interessadas, sobre possíveis vias alternativas para uma outra arquitectura financeira a nível mundial, que melhor possa servir os países em diferentes estádios de desenvolvimento e diferentes orientações de política económica.

• Encorajar tomadas de posição da sociedade civil quanto a alguns aspectos que carecem de reforma urgente, por exemplo, advogando o fim dos paraísos fiscais e de produtos financeiros de elevado risco, uma actuaçãoque contrarie a excessiva concentração do poder económico, a revisão das regras de rating e exigência de independência dos seus agentes.

• Proceder à avaliação do sistema financeiro nacional e das medidas já em vigor ou anunciadas, sua eficácia e equidade, detecção de erros ou lacunas, tendo sobretudo em atenção os que mais sofrem os efeitos da crise.

• Apresentar propostas inovadoras no domínio da fiscalidade para, por exemplo, acentuar a progressividade da tributação sobre os rendimentos, alargar as fontes de financiamento da segurança social, na linha do já em tempos estudado na União Europeia, por via de incidência sobre o valor acrescentado, deixando de penalizar sobretudo quem mais emprega.

• Fomentar a solidariedade para minorar as dificuldades dos mais atingidos pela crise, para além do que é função específica das IPSS ou das Autarquias (que devem ser responsabilizadas pela forma como actuam no âmbito das Redes Sociais), através da partilha do tempo de trabalho, da criação de empresas de economia social, da não acumulação de empregos, salvo em caso de necessidade, etc.

• Denunciar práticas abusivas de empresas que, sem motivo bem justificado, despedem os seus trabalhadores.

Tanto no desenho de uma nova arquitectura do sistema financeiro mundial como na definição de um novo paradigma e na construção de uma nova ordem económica mundial, a União Europeia tem um papel a desempenhar de primordial alcance e os cidadãos e cidadãs dos países que integram a União devem ser os primeiros a empenhar-se nesta tarefa.

7. Palavras finais
Ao sublinhar que a presente crise mundial, sendo financeira e económica, é também política, civilizacional, ambiental, moral e espiritual, a CNJP quer realçar a importância de que todos esses aspectos estejam presentes na análise da crise e na busca de soluções. Assim se evitará uma leitura meramente «economicista»de um fenómeno bem mais vasto e profundo. Trata-se de uma situação em que o ensinamentosocial da Igreja tem uma palavra decisiva de esclarecimento e proposta. Neste entendimento, a CNJP vê reforçada a sua função de difusão daquele ensinamento e não poupará esforços no sentido de a promover, sobretudo entre os cristãos.

A CNJP está plenamente consciente de que a abordagem que faz dos principais aspectos da crise e o sentido das soluções que aponta implicam mudanças profundas de mentalidades, comportamentos e de cultura. São mudanças necessárias, nas quais, a nosso ver, radica a esperança que temos de um futuro mais justo e mais humano. Ao fazê-lo cumpre o seu dever de interpelar a sociedade em geral e os cristãos em particular acerca do significado mais profundo da crise e dos verdadeiros valores em que deve assentar a sua ultrapassagem, conduzindo a sociedade para um estádio civilizacional mais progressivo.

Por outro lado, sabemos que muito do que propomos se não atinge no imediato. Quer isto dizer que, para além do que se faça no sentido de modificar aspectos estruturais do sistema económico-financeiro vigente, consideramos indispensáveis medidas urgentes de apoio aos que mais directamente sofrem os efeitos da crise, designadamente através do desemprego. Uma sociedade solidária não pode poupar esforços no sentido de melhorar e adequar a protecção social no desemprego à actual situação, antes do mais evitando que os novos desempregados venham engrossar o número dos pobres no país, e, ao mesmo tempo, tomando medidas que reduzam ao mínimo a duração do desemprego e permitam o mais rápido regresso à vida profissional normal. As mudanças necessárias não terão lugar se não nos empenharmos no sentido de as promover. Todos somos convocados para esta tarefa difícil, necessária e possível.

Recordando as palavras de Jesus aos seus discípulos: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16; Mc 6,37; Lc 9,13; Cf. Bento XVI, Sacramentum caritatis, n. 88; Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2009, n. 15), sinal de que a acção de Deus conta com a colaboração dos homens, a CNJP deseja que as reflexões contidas no presente texto ajudem as comunidades cristãs a olhar a crise que a todos afecta à luz da Morte e Ressurreição de Jesus Cristo, de modo que, também neste ano de 2009, ao celebrarmos a Sua Páscoa, celebremos também a páscoa de cada um de nós.

Quaresma de 2009.
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1 Para a elaboração do presente documento, a CNJP contou com um texto-base elaborado pelo Grupo de Trabalho permanente sobre Economia e Sociedade.
2 João XXIII, Pacem in Terris, nº 136.
3 Prémio Nobel da Paz de 2006.
4 Concílio Vaticano II, Gaudium et spes¸ nº 69.
5 Paulo VI, Populorum progressio, nº 22.
6 Bartoli, Henri, L’economie, service de la vie. Crise du capitalisme. Une politique de civilisation, PUG, 1996.