A controvérsia do Rito Romano

Vitória Prisciandaro
Revista Vida Pastoral, n.265


Batina, raquete de tênis debaixo do braço, missa em latim na paróquia e, a seguir, happy hour com os amigos. É o retrato do padre novo, atraído pela liturgia pré-conciliar, que emerge da análise original de François Cassingena. O liturgista beneditino publicou o opúsculo Te igitur – Le Missel de Saint Pie V. Hermeneutique et deontologie d’un attachement alguns meses antes da publicação do Summorum Pontificum, o motu proprio de Bento XVI sobre a liturgia, documento pontifício que amplia a possibilidade de celebrar com o Missal de 1962, anterior à reforma proposta pelo Concílio Vaticano II e levada a efeito por Paulo VI. O tempo transcorrido desde que o documento entrou em vigor permite traçar um primeiro balanço sobre sua aplicação e deixa intuir desenvolvimentos interessantes sobre o debate pastoral e teológico, mesmo para além do âmbito litúrgico. É exatamente neste sentido que a análise de Cassingena é profícua: a vontade da volta à liturgia tridentina – que parece atrair mais padres novos e os leigos do que anciãos nostálgicos, que é pedida para crismas e funerais mais do que para a missa – seria expressão de uma cultura e de um modo de sentir a fé não pré-moderno, mas plenamente pós-moderno. “Segundo o teólogo francês, o de Pio V é um Missal rigorosamente individualista, em sintonia com o sentir de hoje, ao passo que o de Paulo VI tem uma abordagem comunitária e, por isso, é percebido como mais antigo em relação à cultura individualista atual”, considera Andrea Grillo, docente de Liturgia no Pontifício Ateneu de Santo Anselmo. A simpatia pelo rito antigo seria, portanto, a expressão de uma forma nova de pertença e de identificação social: “Dá-se forma a percursos individualísticos ou privatísticos: o grupo se autoisola da comunidade porque celebra segundo um regime ritual diferente, renunciando a toda a riqueza bíblica do novo Lecionário, à oração universal cotidiana, à unidade das duas mesas, à concelebração, à comunhão sob as duas espécies”. Em suma, diz Grillo, “há um problema para a pastoral da unidade. Poder-se-ia também dizer que os fiéis fazem parte da mesma Igreja, mas, na verdade, são alfabetizados por liturgias que, de fato, estão numa relação de tensão entre si porque a segunda nasceu para corrigir a primeira”. Um risco que Bento XVI já tinha bem presente quando, na carta aos bispos que acompanha o motu proprio, dizia estar seguro de não haver fundamento tanto em temer que as novas disposições sejam um ataque “à autoridade do Concílio Vaticano II” quanto em pensar que se tenha chegado a uma “separação nas comunidades paroquiais”. Pelo contrário, nas intenções do pontífice, a finalidade da iniciativa é “chegar a uma reconciliação interna no seio da Igreja”, referindo-se à galáxia tradicionalista e aos que têm saudades do rito antigo, também por causa das “deformações da liturgia ao limite do suportável”, das quais se foi ao encontro no pósconcílio. De todo modo, além das intenções, durante os meses que se passaram da introdução do regime duplo de celebração – o Missal em vigor, novus ordo, é considerado forma “ordinária” da liturgia, já o vetus ordus é considerado forma “extraordinária” –, foram enfrentadas algumas dificuldades na interpretação e na aplicação do motu proprio. A mais evidente, a qual se tentou remediar, foi a constatação de que o restabelecimento da liturgia antiga teria arruinado 40 anos de diálogo hebraico-cristão, ao repropor a oração universal da Sexta-feira Santa em que se rezava pela conversão dos hebreus. A solução encontrada, um terceiro caminho entre o velho e o novo rito, não satisfez nem a comunidade hebraica, segundo a qual se trata da substância da velha oração apresentada de forma diferente, nem os lefebvrianos, que tinham acolhido com simpatia a promulgação do motu proprio, mas, diante desse ajuste, sentiram-se traídos. Além desse incidente, que teve ampla repercussão na imprensa, surgiram outros problemas, tanto que o secretário de Estado, o cardeal Tarcisio Bertone, teve de anunciar a publicação de uma “instrução” destinada a esclarecer os pontos obscuros da Summorum Pontificum. Instrução dirimente, porque deveria tratar daqueles parágrafos a respeito dos quais se estava consumando um desentendimento entre párocos, bispos e grupos de tradicionalistas nas Igrejas locais.
“Grupo estável”, “conhecimento do latim”, “autoridade do bispo” são alguns dos pontos sobre os quais se discutiu nesses meses. Os tons foram mantidos baixos, porque também de Roma chegaram intervenções muito duras contra os “dissidentes”, como aquela do secretário da Congregação para o Culto Divino, monsenhor Albert Malcom Ranjith, o qual, entrevistado pelo diário on-line Petrus e pela agência Fides, acusou de desobediência ao pontífice aqueles “teólogos, liturgistas, sacerdotes, bispos e até cardeais” que expressaram críticas e contrariedade à iniciativa papal. Que o novo regime causasse vivo debate era certamente de esperar. Os rumores que davam como iminente a publicação do motu proprio tinham feito chegar a Roma cartas de protesto por parte do episcopado de todo o mundo, sobretudo da França, onde a ferida cismática lefebvriana é muito aberta. O próprio cardeal Ratzinger,
numa carta que está circulando na internet, datada de 23 de junho de 2003 e endereçada a Heinz-Lothar Barth, professor da Universidade de Bonn, que pedia uma acessibilidade maior ao rito antigo, escrevia que “a existência de dois ritos é uma prática de difícil gestão para padres e bispos”. Com efeito, enquanto até 14 de setembro de 2007 o uso do Missal antigo era concedido por indulto pontifício somente em casos excepcionais e sob a responsabilidade do bispo local, hoje, onde haja “estavelmente um grupo de fiéis que aderem à precedente tradição litúrgica”, o pároco é convidado a acolher “de boa vontade o seu pedido”. No caso de os paroquianos não estarem satisfeitos, podem reclamar ao bispo, “vivamente rogado a satisfazer o seu desejo”. O último destinatário para as disputas que aparecerão em nível local é a Pontifícia Comissão “Ecclesia Dei”, instituída em 1988 para reconstituir as relações com os lefebvrianos. Por isso, um dos pontos candentes sobre os quais haverá de intervir a próxima instrução é exatamente o parágrafo no qual se diz ser possível celebrar a eucaristia e os sacramentos com o rito anterior à reforma litúrgica em todas as paróquias em que haja “um pedido motivado” e “um grupo estável”. A falta de “estabilidade” – entendida como história preexistente e conhecimento mútuo entre os membros de uma mesma comunidade – fez que, em muitos casos, os padres, apoiados pelos bispos, recusassem a celebração extraordinária a grupos de pessoas provenientes de diversas paróquias, que se juntaram ad hoc na ocasião. Também o não-conhecimento do latim foi motivo da recusa. Nos Estados Unidos, em julho, o então presidente da Comissão Litúrgica, dom Donald Trautman, afirmara que os padres desejosos de celebrar com o rito antigo “deverão submeter-se a um exame de latim”, porque o próprio Bento XVI escreveu que “o uso do velho Missal pressupõe certo nível de formação litúrgica e de conhecimento da língua latina”. A mesma atitude foi manifestada pelos bispos suíços. Do latim e, particularmente, do “direito dos candidatos ao sacerdócio de ser instruídos em ambas as formas do rito romano”, dever-se-ia tratar na próxima instrução, como se lê numa carta de “Ecclesia Dei” de 9 de fevereiro de 2008, em circulação nos blogs tradicionalistas. Os problemas, sejam quais forem, não são somente pastorais, mas também jurídicos. Entre os que se dedicam à questão, um dos pontos que
causam perplexidade é o risco de conflitos de competência (pároco, reitor de igreja, superior religioso, bispo, Pontifícia Comissão “Ecclesia Dei”), no caso de contenciosos. O equilíbrio estabelecido pelo Vaticano II, que dava ao bispo autoridade plena em matéria, parece ter se tornado precário pelas novas normas, que acabam de interferir em temas teológicos de amplo respiro como as relações entre Igreja universal e igrejas locais, entre unidade e pluralidade, entre uniformidade e diferenças legítimas, entre centro e periferia. É verdade, diz-se, que a “Ecclesia Dei”, de alguma forma, assume sobre si as dificuldades que possam chegar aos bispos, no caso de contestações, mas pedir ao pastor da Igreja local que não se ocupe de tais argumentos não significa talvez esvaziar a sua autoridade? “Não é somente uma questão de liberdade de escolha entre rito ordinário e extraordinário”, diz Basilius Groen, holandês, diretor do Instituto para a Liturgia, a Arte Cristã e a Hinologia
da Universidade de Graz, na Áustria. “O medo é nos encontrarmos diante de dois modelos eclesiológicos diversos: o primeiro é centrado sobre o padre, e para o outro é fundamental a participação da comunidade”. Para sublinhar a diferença, Groen relembra o documento preparatório do Missal de Trento, que se inicia com a frase “Sacerdos paratus” (“quando o padre está pronto”), ao passo que o texto da liturgia de Paulo VI se inicia com “Populo congregato” (“quando a assembleia está reunida”). O que faz pensar que se trate de uma eclesiologia diversa, diz o liturgista holandês, é o fato de que muitos dos sustentadores do rito tridentino tenham problemas com textos como a Unitatis Redintegratio, a Dignitatis Humanae, a Nostra Aetate, isto é, com os temas do ecumenismo, da liberdade de consciência
e de religião. Pelos blogs dos tradicionalistas emerge a compreensão de que eles olham para o Vaticano II como um incidente do caminho, uma doença da qual é preciso sarar. De um ponto de vista histórico, não me surpreendem esses desenvolvimentos: também os Concílios de Niceia, Calcedônia e Trento foram aceitos depois de várias lutas intestinas. Assim como não julgo que a reposição do rito tridentino possa ser solução aos abusos litúrgicos Também na Itália, e não só nas aulas de Teologia, o motu proprio causou reflexões em cadeia. “Como liturgistas, até hoje tínhamos como consolidadas categorias como a Lex credendi e a Lex orandi: a primeira era o conteúdo da fé; a segunda, as formas concretas da celebração. Quando mudava uma, mudava também a outra, porque o modo de rezar é fundamental para o modo de viver a fé”, afirma Grillo. Hoje se diz que existem dois usos diversos da mesma Lex orandi; diz-se que a fé é comum sobre bases dogmáticas e bíblicas, e depois, só haveria usos litúrgicos diversos. A reforma litúrgica tinha feito um caminho para encontrar um rito comum dentro do qual houvesse o pluralismo legítimo. Corre-se, porém, o risco de gerar uma espécie de self-service de ritos diversos. E, em uma sociedade tentada pelo “supermercado” das religiões, “a escolha do rito velho poderia tornar-se uma oferta a mais do sacro. Em outros países como a França, a coisa é mais evidente, porque a reforma litúrgica não teve a difusão e a popularidade que se verificaram na Itália”. “O motu proprio nos deu matéria sobre a qual trabalhar”, conclui Grillo. “E tudo isso é um estímulo a reler muitos conceitos dados por evidentes e relançar os motivos verdadeiros que tornam urgente e irreversível a reforma litúrgica”. Por sua vez, o professor Groen ressalta a necessidade de preservar a missão dos teólogos, a quem cabe um trabalho sério: “Não somos infalíveis, mas temos o dever de exercer uma função profética de visão crítica a serviço da Igreja”.

Artigo publicado na revista italiana Jesus (San Paolo), de maio de 2008. Reproduzido com autorização do editor.
Tradução: Pe. Lourenço Costa.