I. Importância e centralidade da Liturgia

Que a liturgia seja um tema que está no coração do Papa Bento XVI é coisa amplamente demonstrada pela importância e pela frequência das suas intervenções nessa matéria nestes primeiros anos do seu pontificado.

Já são inúmeros os discursos, as alocuções, as catequeses sobre tal assunto, que retorna sempre com insistência também nos documentos maiores, desde as encíclicas até o recente motu proprio “summorum Pontificum”.

Estas intervenções, ocorridas em tempos recentes e sob os holofotes do pontificado, são bastante conhecidas, mesmo assim não será inútil dar sobre elas um olhar panorâmico.

Talvez menos conhecidas às pessoas são as tantas obras que o Papa escreveu sobre a liturgia antes da sua eleição, como teólogo – juntamente e inúmeras entrevistas e palestras.

Todo esse material revela uma total continuidade com o seu atual magistério e se desenvolve com um poder de pensamento e uma profundidade de análise que deixa o leitor admirado.

Além disso, pela própria natureza menos rígida que os documentos magisteriais, normalmente mais breves e destinados a circunstâncias particulares, os escritos do então Cardeal Ratzinger são de grande ajuda para manifestar plenamente o pensamento dos textos magisteriais na sua inspiração de fundo. Sem pretender substituir uma leitura das obras em questão (que é, ao contrário, fortemente recomendada), estas páginas desejam examinar algumas linhas fundamentais do pensamento litúrgico do Papa baseando-se nas suas palavras, escritas ou pronunciadas seja antes que depois da sua eleição; e isto para ajudar a melhor situar-se nas controvérsias que tal ensinamento tem suscitado ocasionalmente – como sempre acontece quando o sal do Evangelho resiste obstinadamente a perder o sabor.

Por que um lugar tão central para a liturgia? Será que não têm razão aqueles ambientes eclesiais que tendem a relegá-la a um segundo plano, como se se tratasse de um simples elemento formal – uma questão ao final das contas de pouca importância sobre usos e costumes? Não para o Papa!

No livro-entrevista “Fé em Crise” assim se exprimia o então Cardeal: “Por trás dos diversos modos de conceber a liturgia estão, como de costume, modos diversos de conceber a Igreja, Deus e as relações do homem com ele. O discurso litúrgico não é merginal: foi o próprio Concílio quem nos recordou que neste ponto estamos no coração da fé cristã”.

A questão não é banal: se a finalidade do homem é conhecer, amar e servir a Deus, então torna-se totalmente essencial o modo como o ser humano coloca-se diante Dele para Dele receber os dons sacramentais, para expiar as próprias quedas, para agradecer a salvação ofertada em Cristo. A vida cristã é uma relação pessoal com o Pai que chama a si os seus filhos; o diálogo é, portanto, fundamental. Certamente este diálogo pode ser privado e individual; mas para ser realmente diálogo precisa ser sustentado e quase mergulhado naquele perene canto de amor da Esposa pelo seu Esposo, que é a liturgia pública da Igreja. E este cântico tem ritmos e tonalidades todo próprios, que se tornam eles mesmos “conteúdo” e não simplesmente “forma”. Lex orandi, lex credendi (= a lei da oração é a lei do que se crê), diziam os cristãos dos primeiros séculos: os modos e as formas de rezar – compreendidos como rezar público, litúrgico – determinam os conteúdos do crer. E, historicamente, é inegável que as mudanças ocorridas na lex orandi acompanham e marcam invariavelmente paralelas mudanças das ênfases e da compreensão dos conteúdos da fé.

Numa outra obra, o então Cardeal retoma o mesmo tema, apontando a atitude superficial, na sua opinião, com a qual em muitos lugares foi acolhido o convite do Concílio Vaticano II para uma renovação da liturgia: “Pareceu a muitos que a preocupação com uma forma correta de liturgia fosse uma questão de pura práxis, de uma procura da forma de Missa mais adequada e acessível aos homens do nosso tempo. Nesse meio tempo viu-se sempre mais claramente que na liturgia trata-se da nossa compreensão de Deus e do mundo, da nossa relação com Cristo, com a Igreja e conosco mesmos. Na relação com a liturgia decide-se o destino da fé e da Igreja. Assim, a questão litúrgica adquiriu atualmente uma importância que antes não podíamos prever’ (J. Ratzinger, Cantate al Signore un canto nuovo, p. 9).

Em outra parte o mesmo conceito vem expresso ainda com drástica concisão: “Estou convencido que a crise eclesial na qual hoje nos encontramos depende em grande parte do desmoronamento da liturgia” (J. Ratzinger, La mia vita, p. 112).

Mas, no pensamento do Papa a importância de liturgia estender-se até mesmo para além dos limites da Igreja, para constituir um elemento fundamental da vida e do ambiente humano: “O direito e a moral não se mantêm unidos as não estiveram ancorados no centro litúrgico e não encontrem neles a inspiração. Somente se a relação com Deus for correta todas as outras relações do homem - as dos homens entre si e do homem com as outras realidades criadas – podem funcionar” (J. Ratzinger, Introduzione allo spirito della liturgia, p. 16).

É um texto extremamente forte e tem-se a tentação de colocá-lo em dúvida se as circunstâncias do nosso tempo não confirmassem sua dramática validade.

Mas, onde se encontra o fundamento dessa influência do culto litúrgico sobre a vida humana em geral? O futuro Papa responde no seguinte texto citado: “A adoração, a correta modalidade do culto, da relação com Deus, é constitutiva para a reta existência humana no mundo: ela é tal precisamente porque através da vida cotidiana faz-nos participantes do modo de existir do “céu”, do mundo de Deus, deixando, assim, transparecer a luz do mundo divino no nosso mundo. O culto prefigura uma vida definitiva e, desse modo, dá à vida presente a sua medida. Uma vida na qual faltasse tal atecipação, na qual o céu não é mais esboçado, seria sombria e vazia”.

Trata-se de uma visão de notável grandeza: para o Papa, a liturgia da Igreja torna-se o canal privilegiado do governo divino sobre a terra, e possui por si mesmo uma potência demiúrgica que plasma a partir do seu modelo os eventos deste mundo, fazendo-se “medida” da “vida presente”. A liturgia é o céu sobre a terra; por isso ela deve falar a língua do céu – este é o motivo pelo qual não se trata de procurar a forma “mais adequada e acessível aos homens do nosso tempo”, como se colocou acima.