III. A aplicação da reforma litúrgica

O Vaticano II sublinhou em muitos documentos a necessidade de uma renovação litúrgica que acolhesse as melhores conquistas do movimento litúrgico, que nas décadas precedentes tinha sabido investigar os tesouros históricos da Igreja para encontrar o modo de restituir ao seu originário esplendor formas rituais que o tempo havia coberto com um véu de poeira. Portanto, como observa o Papa noc itado documento, se depois exatamente “pessoas de “acurada formação litúrgica” tomram cedo a decisão de não seguir as formas litúrgicas surgidas da desejada renovação litúrgica, é sinal deque algo não funcionou.

Escutemos novamente o Papa na citada carta de acompanhamento do Motu proprio: “Isto aconteceu antes de tudo porque em muitos lugares não se celebrava de modo fiel às prescrições do novo missal, mas este vinha compreendido mesmo como uma autorização ou até uma obrigação à criatividade, a qual conduziu frequentemente a deformações da Liturgia até o limite do suportável. Falo por experiência, porque vivi também eu aquele período com todas as suas esperanças e confusões. E vi o quanto profundamente pessoas que eram totalmente radicadas na fé da Igreja tenham sido profundamente feridas pelas arbitrárias deformações da Liturgia”.


O Papa Bento fala, portanto, de “deformações arbitrárias”. Trata-se, segundo esta análise, de aplicações erradas vindas posteriormente, e não do missal de Paulo VI em si. Sobre este último, mais das vezes nos seus escritos o Papa repreende aqueles que julgam o próprio missal uma deformação da tradição eclesial e expressão de uma teologia heterodoxa.

Não é por acaso que ele prefere não falar em dois ritos, mas em “duas formas de um mesmo rito”: forma extraordinária, o antigo missal; forma ordinária, o novo; e “não há nenhuma contradição entre uma e outra edição do Missale Romanum”.

A mesma coisa o então Cardeal Ratzinger tinha declarado mais detalhadamente em um discurso de 24 de outubro de 1998: “Pode-se afirmar isto: que vem muitas vezes extrapolada a liberdade que o novo Ordo Missae deixa à criatividade, e que a diferença entre liturgias que se celebram segundo os novos livros, assim como de fato são colocadas em prática e celebradas nos diversos lugares, é frequentemente maior que aquela entre a antiga e a nova liturgia, quando uma e outra são celebradas em conformidade com as prescrições dos livros litúrgicos. O cristão mediano, privado de uma cultura litúrgica especializada, tem dificuldade de distinguir entre uma Missa cantada em latim segundo o antigo missal e uma cantada em latim segundo aquele novo. A diferença entre uma celebração litúrgica que se atém fielmente ao missal de Paulo VI e a realidade de celebrações em língua corrente com toda as possíveis liberdades de participação e de criatividade, essa diferença sim, é que pode ser enorme!”

Esta afirmação, clara e repetida, que a diferença entre o antigo e o novo “ordo Missae” não é substancial, e que se trata antes de duas formas do mesmo rito, pode agradar ou não – trata-se em todo caso do parecer do Papa, expresso mesmo de modo formal em atos de elevado valor magisterial. Prestamos, portanto, a tal parecer o religioso assenso que ele requer e passamos a examinar quais sejam as deformações “ao limite do suportável” de que se fala, advertidos pelas próprias palavras do Papa que “... fica por ver até que ponto as específicas etapas da reforma litúrgica depois do Vaticano II foram verdadeiros melhoramentos ou, ao invés, banalizações; até que ponto foram pastoralmente sábias ou, ao contrário, imprudentes” (J. Ratzinger, Rapporto sulla fede, pp. 123-124).