IV. A liturgia não é produto humano

Na “mira” do Papa, seja antes quanto depois da sua eleição, está em primeiro lugar o conceito de “criatividade litúrgica”; de fato, frequentemente parece, nas últimas décadas, que cada comunidade, cada sacerdote individualmente, sejam chamados a “inventar” as formas do culto segundo a própria sensibilidade.

Em uma entrevista de 5 de setembro de 2003 o então Cardeal declara: “De modo geral, penso que a reforma litúrgica não foi bem aplicada, porque se tratava de uma idéia geral. Hoje a liturgia é uma coisa da comunidade. A comunidade representa a si própria e, com a criatividade dos padres ou de outros grupos, criam-se as suas liturgias particulares. Trata-se mais da presença das suas experiências e idéias pessoais que do encontro com a Presença do Senhor na Igreja; e com essa criatividade e esta autoapresentação da comunidade está desaparecendo a essência da liturgia. Com a essência da liturgia nós podemos superar as nossas próprias experiências e receber aquilo que não deriva delas próprias, mas que é um dom de Deus. Assim, penso que devemos restaurar não tanto certas cerimônias, mas a idéia essencial da liturgia – compreender que na liturgia não representamos nós mesmos, mas recebemos a graça da presença do Senhor na Igreja do céu e da terra. E parece-me que a universalidade da liturgia seja essencial”.

As últimas linhas são fundamentais: no pensamento constante do Papa, a liturgia é dada do alto. Certamente este dom passa através de mediações humanas (o que constitui a Igreja como comunidade profética), mas permanece algo bem diverso de um produto humano; e dado oseu caráter de culto público, é e deve permanecer universal.

No livro “Introduzione allo spirito della liturgia”, p. 17-18, encontramos expresso de modo muito forte o mesmo conceito. Falando do nascimento do culto do povo de Deus no Sinai, mas pensando na atualidade, o Cardeal Ratzinger escreve: “O homem não pode “fazer-se” por si mesmo o próprio culto; ele assim toca somente o vazio, se Deus não se mostra. Quando Moisés diz ao faraó: “Nós não sabemos com que vamos servir ao Senhor” (Ex 10,26), nas suas palavras aparece de fato um dos princípios basilares de todas as liturgias. A verdadeira liturgia pressupõe que Deus responda e mostre como nós poderemos adorá-lo. Ela implica de qualquer modo uma forma de instituição. Ela não pode derivar sua origem da nossa fantasia, da nossa criatividade, de outro modo permaneceria um grito no escuro ou uma simples autoconfirmação”.

Este caráter não arbitrário do culto emerge por contraste de modo dramático no episódio do bezerro de ouro. “Este culto, guiado pelo sumo sacerdote Aarão, não deveria realmente servir a um ídolo pagão. A apostasia é mais sutil. Não se consegue manter a fidelidade ao Deus invisível, distante e misterioso. Fá-se-lo descer ao próprio nível, reduzindo-o à categoria de visibilidade e compreensibilidade. Desse modo, o culto não é mais um elevar-se em direção a ele, mas um abaixamento de Deus às nossas dimensões.

O homem serve-se de Deus segundo a própria necessidade e, assim, na realidade, põe-se acima dele. Este culto torna-se então uma festa que a comunidade se faz por si mesma; celebrando a si própria, a comunidade não faz mais que confirmar-se a si própria. Da adoração de Deus passa-se a um círculo que gira em torno de si mesmo. A história do bezerro de ouro é uma advertência contra um culto realizado à própria medida e à procura de si mesmo. Mas, ao final sobra também a frustração, a sensação do vazio. Não há mais aquela experiência de libertação que acontece ali, onde ocorre um verdadeiro encontro com o Deus vivo”.

Ante estas linhas impressionantes, pode-se objetar (como, de fato, objetou-se de diversas partes): mas, a compreensibilidade da liturgia não é um valor positivo? Se ela é um “sinal”, o sinal não deve necessariamente ser decifrável para o seu destinatário humano?

No livro “Il sale della terra”, p. 199, o cardeal Ratzinger responde: “Na nossa reforma litúrgica existe a tendência, errada, na minha opinião, de adaptar completamente a liturgia ao mundo moderno. Portanto, ela deveria tornar-se ainda mais breve e dela deveria ser afastado tudo aquilo que se julgue incompreensível; finalmente, ela deveria ser traduzida numa figura ainda mais simples, mais “plana”. Deste modo, porém, a essência da liturgia e a própria celebração litúrgica são totalmente mal compreendidas. Porque nela não se compreende somente de modo racional, como se compreende uma conferência, mas de modo complexo, participando com todos os sentidos e deixando-se compenetrar por uma celebração que não é inventada por alguma comissão qualquer de especialistas, mas que nos chega da profundidade dos milênios e, em última instância, da eternidade”.

É a condenação do racionalismo teológico, no fundo, a mesma que já no século XVI a Igreja havia oposto a Lutero: Deus, razão absoluta, está para além da nossa limitada razão. E a liturgia, com os seus símbolos sutis, é precisamente uma das modalidades suprarracionais com as quais Deus se comunica ao homem.

Como consequência do abuso da “criatividade” perdeu-se o específico litúrgico que não deriva daquilo que nós fazemos, mas do fato que aqui acontece Algo que todos nós juntos não podemos absolutamente fazer. Na liturgia opera uma força, um poder que nem mesmo a Igreja toda inteira pode dar a si própria: aquilo que ali se manifesta é o absolutamente Outro que, através da comunidade (que não é dona dele, mas serva, mero instrumento), chega até nós (Do livro-entrevista “Rapporto sulla fede”).

Continua o mesmo texto: “Para o católico, a liturgia é a Pátria comum, é a fonte mesma da sua identidade: também por isso ela deve ser ‘predeterminada’, ‘impertubável’, porque através do rito manifesta-se a Santidade de Deus. Pelo contrário, a revolta contra aquela que foi chamada “a velha regidez rubricista”, acusada de cortar a “criatividade”, envolveu também a liturgia na onda do “faça você mesmo”, banalizando-a, porque fê-la conforme à nossa medíocre medida.