V. O desenvolvimento orgânico da liturgia

Este caráter ultramundano da liturgia determina duas características suas, aparentemente em contradição entre elas. Por um lado, como se acabou de ver, ela é “predeterminada” e “imperturbável’, subtraída aos arbítrios do celebrante, seja a comunidade seja o próprio celebrante. Por outro lado, ela não é fixa em sentido absoluto. Como todas as formas da Igreja, ela também acompanha o homem no seu percurso histórico; e, como mudam as condições históricas, e culturais do homem, também ela pode mudar, e de fato mudou. Mas, fá-lo de modo “orgânico”. O vocábulo é do Concílio Vaticano II, que o introduz normativamente no número 23 da Constituição Sacrosanctum Concilium: “Não se introduzam inovações senão quando o requeira uma verdadeira e comprovada utilidade da Igreja, e com o cuidado que as novas formas brotem organicamente, de certo modo, daquelas já existentes”.

Este termo significa que a liturgia cresce e se modifica como os organismos vivos, isto é, lentamente, sem sobressaltos e em virtude não de forças externas, mas de um impulso vital interno (neste caso, sustentado pelo Espírito Santo). Assim como ocorre nas Igrejas orientais, e como sempre ocorreu no Ocidente até os tempos recentes, as mudanças podem ocorrer, mas devem ser interpretáveis no sentido de continuidade com o já existente; e o juízo sobre elas não devem dizer respeito somente à Hierarquia: é também o uso e a aceitação dos fiéis que, nos séculos, determina o acolhimento de uma modificação ou a supressão de uma outra.

Para Bento XVI, a “organicidade” da mudança é o critério único e verdadeiro de legitimidade litúrgica. “A liturgia não é comparável a um aparato técnico, a algo que se fabrica, mas é comparada a uma planta, isto é, a algo orgânico, que cresce e cujas leis de crescimento determinam as possibilidades de um ulterior desenvolvimento” (Introduzione allo spirito della liturgia, p. 161). Na sequência do próprio texto o Papa põe-se o problema do papel do próprio papado na definição do desenvolvimento litúrgico. O Pontífice, observa, “sempre mais reinvidicou a legislação litúrgica”. Mas, “quanto mais fortemente impunha-se esse primado, tanto mais aparecia a questão da extensão e dos limites de tal autoridade que, certamente, não foi nunca, enquanto tal, objeto de reflexão”.

Depois do Concílio Vaticano II começou-se a ter a impressão que o papa pudesse fazer qualquer coisa em matéria litúrgica, sobretudo se agisse por encargo de um concílio ecumênico. Assim, deu-se que a idéia da liturgia como algo que nos precede que não pode ser “fabricada” a próprio gosto foi amplamente perdida na consciência difusa do Ocidente. Na verdade, porém, o Concílio Vaticano I de modo algum quis definir o papa como um monarca absoluto, mas, pelo contrário, como o garantidor da obediência em relação à palavra transmitida: o seu poder é ligado à tradição da fé e isto vale também no âmbito da liturgia. Ela não é ‘fabricada’ por funcionários. Também o papa pode somente ser humilde servidor do correto desenvolvimento e da sua permanente integridade e identidade”.

Esta surpreendente reflexão prossegue comparando a experiência do Oriente cristão com aquela ocidental, concluindo que “o caminho palmilhado pelo Ocidente, com a sua especificidade e o espaço deixado à liberdade e a história, não pode ser de modo algum condenado em bloco. Mas, se se abandonam as intuições fundamentais do Oriente, que são as intuições fundamentais da Igreja antiga, chegar-se-ia verdadeiramente à dissolução dos fundamentos da identidade cristã. A autoridade do papa não é ilimitada; ela está a serviço da santa Tradição”.

Seja-nos consentido observar que estas linhas fundamentais, se levadas a sério por ambas as partes (Oriente e Ocidente), seriam provavelmente suficientes para a superação do fosso criado entre a Igreja romana e as igrejas ortodoxas...

Destes princípios fundamentais, o Papa Bento XVI tiras as conclusões lógicas: a liturgia tradicional, mesmo depois da introdução do novo missal, não foi nunca abolida enquanto é não abolível!

“No curso da história, a Igreja jamais aboliu ou proibiu formas ortodoxas de liturgia, porque isso seria estranho ao próprio espírito da Igreja” (da conferência "A dieci anni del Motu proprio Ecclesia Dei", 24 ottobre 1998). O mesmo conceito é retomado, como vimos, também no recente Motu proprio “Summorum pontificum”.

Mas, para além das formas jurídicas, ainda que importantes, está a atitude mesma em relação à liturgia tradicional, que provoca o desalento do Papa. “Para uma correta tomada de consciência em matéria litúrgica é importante que desapareça a atitude de arrogância para com a forma litúrgica em vigor até 1970. Quem hoje sustenta a continuação desta liturgia ou participa diretamente das celebrações dessa natureza é colocado no índice (= é condenado); toda tolerância desaparece a este respeito. Na história nunca aconteceu nada do gênero. Assim é o inteiro passado da Igreja que é desprezado. Como se pode confiar no seu presente se as coisas estão desse modo? Não compreendo nem mesmo, para ser franco, por que tanta sujeição por parte de muitos coirmãos Bispos em relação a esta intolerância, que parece ser um tributo obrigado ao espírito dos tempos, e que parece prejudicar, sem um motivo compreensível, o processo de necessária reconciliação no interior da Igreja” (Dio e il mondo. Una conversazione con Peter Seewald, p. 380).
Mas, o texto mais significativo para uma avaliação histórica da ruptura de continuidade ocorrida em 1970 encontra-se no “La mia vita: ricordi, 1927-1977, p. 110. Ao ato da abolição do novo missal’, diz o então Cardeal, “eu fiquei desconcertado pela proibição do missal antigo, já que algo semelhante nunca se havia verificado em toda a história da litúrgica. Deu-se a impressão que isto fosse totalmente normal”.
O autor prossegue avançando uma possível objeção: também Pio V, exatamente quatro séculos antes, com a introdução do seu missal, tinha proibido o uso dos textos precedentes. Mas, se tratava de uma circunstância completamente diversa: a difusão da Reforma protestante se tinha insinuado em muitos rituais, aproveitando-se do pluralismo litúrgico que havia caracterizado a Igreja medieval, “tanto que os limites entre o que era católico e o que não o era mais, frequentemente era bem difícil de definir”. Nesta situação de emergência, na impossibilidade de controlar uma por uma as inúmeras variantes locais, Pio V impôs que se adotasse o Missal romano, seguramente ortodoxo, em todas as Igrejas locais cujos rituais não tivesse uma antiquidade de pelo menos dois séculos. Vários usos litúrgicos, como o moçarábico na Espanha e o ambrosiano em Milão, permaneceram, portanto, intactos, ao lado daquele romano. Alguns ritos mesmo ortodoxos terminaram sendo vítimas dessa prescrição, mas não intencionalmente: a intenção do Papa foi a de supor que qualquer que fosse o ritual nascido depois de 1370 corresse o forte risco de desvio da ortodoxia, e foi com base nessa suposição que eles foram abolidos.
“Não se pode, portanto, falar numa proibição no tocante aos missais precedentes que eram até aquela época regularmente aprovados”, prossegue o texto. “Agora, ao invés, a promulgação da proibição do missal que se tinha desenvolvido no curso dos séculos, desde o tempo dos sacramentais da antiga Igreja, comportou uma ruptura na história da liturgia, cujas conseqüências somente poderiam ser trágicas. Como já ocorrido muitas vezes antes, era totalmente compreensível e plenamente de acordo com as disposições do Concílio que se chegasse a um revisão do missal, sobretudo em consideração da introdução das línguas nacionais.

Mas, naquele momento ocorre algo mais: demoliu-se o edifício antigo e a partir dele se construiu um outro, mesmo que tenha sido com o material de que era feito o edifício antigo e utilizando os projetos precedentes. Não há dúvida que este novo missal comportasse em muitas de suas partes autênticos melhoramentos e um real enriquecimento; mas o fato de ele ter sido apresentado como um edifício novo, contraposto àquele que se tinha formado ao longo da história, o fato de se proibisse este último e se fizesse de certo modo a liturgia aparecer não mais como um processo vital, mas como um produto de erudição de especialistas e de competência jurídica, trouxe para nós danos extremamente graves. Deste modo, com efeito, desenvolveu-se a impressão que a liturgia seja “fabricada”, que não seja algo que existe antes de nós, algo de “doado”, mas que dependa das nossas decisões. Consequência disso é que não se reconheça esta capacidade de decisão somente a alguns especialistas ou a uma autoridade central, mas que, definitivamente, cada “comunidade” deseje dar-se a si mesma uma liturgia própria. Mas, quando a liturgia é algo que cada um fabrica por si, então ela já não nos doa aquilo que é sua verdadeira qualidade: o encontro com o Mistério, que não é produto nosso, mas a nossa origem e a fonte da nossa vida”.
Percebe-se neste longo texto que o ponto fundamental não é, como se disse, a natureza do novo ritual, por si perfeitamente ortodoxo, mas a supressão (mediante um abuso de autoridade) daquele tradicional, coisa que gerou uma artificial contraposição entre um “velho”, que deveria ser eliminado apressadamente e um “novo”, produzido em gabinete por uma comissão de expertos.

Há uma outra objeção: para alguns, a essência da reforma litúrgica seria determinada não tanto pela ruptura da tradição, mas, ao contrário, pela tentativa de reduzir o rito a uma sua “primitiva pureza”, tirando-lhe a crosta dos acréscimos acumulados nos séculos.

No capítulo 9 do citado “Rapporto sulla fede”, o então Cardeal Ratzinger responde a tal “arqueoloogismo romântico de certos professores de liturgia”, segundo os quais tudo aquilo que se fez depois de Gregório Magno deveria ser eliminado como uma deformação, um sinal de decadência. Como critério da renovação litúrgica não puseram a pergunta: “Como deve ser hoje?”, mas a outra: “Como era naquele tempo?” Esquece-se que a Igreja é viva, que asua liturgia não pode ser petrificada naquilo quese fazia na cidade de Roma antes da Idade Média. Na realidade, a Igreja medieval (ou também, em certos casos, a Igreja barroca) realizaram um aprofundamento litúrgico que é necessário avaliar com atenção antes de eliminar. Devemos respeitar também aqui a lei católica do sempre melhor e mais profundo conhecimento do patrimônio que nos foi confiado. O puro arcaísmo não serve, assim como não serve a pura modernização.